Revista Época

Data: 01 de setembro de 2003

O cigarro, de novo

 Maior pesquisa já feita no Brasil revela que fumantes têm cinco vezes mais chances de sofrer infarto

 

Pode até parecer perseguição aos fumantes, mas não é. A mais completa pesquisa brasileira sobre as causas de infarto revela que o cigarro tem efeitos muito mais graves do que se imaginava. Ao contrário do senso comum, que culpa principalmente os excessos na alimentação, o colesterol alto e o sedentarismo pelos casos de infarto agudo do miocárdio, um estudo realizado em 104 hospitais de 19 Estados comprova que, no Brasil, o tabagismo é o grande vilão do coração - e a principal causa isolada de morte no país. 'Se alguém tivesse de escolher entre parar de fumar e tomar remédio para baixar o colesterol, recomendaria largar o cigarro', afirma o cardiologista Leopoldo Piegas, diretor do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e coordenador do estudo.

'Sentia uma dor como se um elefante estivesse pisando em mim. Agora, faço ginástica controlada e não fumo. Decidi não arriscar. E consigo sentir o perfume da minha mulher'
EDUARDO ROSSETTO, publicitário

 

Colhidos entre 1997 e 2000, os dados revelaram que quem fuma cinco ou mais cigarros por dia tem cinco vezes mais chance de infartar do que um não-fumante da mesma idade e do mesmo sexo. É quase o dobro da probabilidade de quem está sujeito ao segundo fator de risco, o diabetes. E quem pensa que fumar pouco afasta os perigos está enganado. De acordo com a pesquisa, quem queima menos de cinco cigarros por dia ainda tem o dobro de chance de infartar do que um não-fumante. 'A prevalência do cigarro como causa principal de infarto é surpreendente', diz o diretor da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Augusto Bozza.

Todo esse peso do cigarro no risco de um infarto é uma singularidade do Brasil. Na Índia, por exemplo, uma pesquisa semelhante apontou que entre os fumantes esse risco é 3,6 vezes maior que entre os não-fumantes. Nos Estados Unidos, o fumante tem três vezes mais chances de infarto. A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) estima que 30% da população adulta do Brasil fuma - e existe uma tendência de crescimento do vício entre as mulheres.

O MAL DA FUMAÇA

O maior estudo brasileiro sobre infarto no miocárdio revelou que o cigarro é o grande vilão da doença

Quem
Tem um risco maior que o normal
 1. Fuma mais de 5 cigarros/dia
4,9 vezes
 2. É diabético
2,8 vezes
 3. É obeso
2,4 vezes
 4. Tem colesterol alto
2,1 vezes
 5. É hipertenso
2 vezes
 6. Fuma menos de 5 cigarros/dia
2 vezes

 Fonte: Projeto Afirmar

 

O estudo, chamado de Afirmar (Avaliação dos Fatores de Risco para Infarto Agudo do Miocárdio no Brasil), foi publicado na edição de agosto da revista americana American Heart Journal. Ele comparou as condições físicas e os hábitos de 2.558 pacientes de 51 cidades. Metade deles havia acabado de ter seu primeiro infarto no miocárdio. O restante estava no hospital por outras causas que não o coração e apresentava eletrocardiograma normal. A comparação detalhada revelou que, depois do cigarro, as maiores causas do problema são diabetes e obesidade. Quem tem diabetes corre 2,8 vezes mais risco de sofrer um infarto que um não-diabético. Os obesos (definidos na pesquisa pela média entre a circunferência da cintura e a do quadril) multiplicam por 2,4 suas possibilidades de infarto em relação aos que têm peso normal.

O colesterol alto figura apenas como quarto colocado no estudo. O paciente com altos níveis de LDL (o mau colesterol) tem 2,1 vezes mais chances de infartar do que aqueles com taxas normais. Esses são os principais riscos que uma pessoa pode controlar a partir de medicamentos ou mudança de hábitos. O histórico familiar de doenças cardíacas, que também provoca um alto risco de infarto, é uma característica imutável (leia os dados da pesquisa no quadro).

 

'Se alguém tivesse de escolher entre parar de fumar e tomar remédio para baixar o colesterol, recomendaria largar o cigarro'
LEOPOLDO PIEGAS, diretor do Instituto Dante Pazzanese

 

 

Um ponto importante no estudo é que o paciente com mais de um fator de risco tem suas chances de infarto multiplicadas. Assim, um fumante que também é obeso acaba tendo probabilidade de infarto 11,7 vezes maior do que uma pessoa normal (é o resultado da multiplicação dos 4,9 de chance de um fumante pelos 2,4 de um obeso).

O cigarro faz tanto mal porque, no ato de tragar, todas as artérias e veias se contraem, reação chamada de vasoconstrição, que dificulta a circulação do sangue. Soma-se a isso um segundo fator: a ação da nicotina nas paredes internas dos vasos sanguíneos. A nicotina favorece a formação das placas que acabam entupindo as artérias, num processo semelhante à ação do colesterol.
'A pessoa estressada, que fuma para relaxar, está na verdade dificultando a circulação do sangue no organismo', explica o cardiologista Bozza, da SBC.

O publicitário paulista Eduardo Rossetto é um exemplo do 'efeito fumaça'. Seis anos atrás, aos 43 anos, ele estava em forma, com o colesterol controlado e sem diabetes ou hipertensão. Adorava jogar vôlei e praticar mountain biking. Seu único problema era o tabagismo - fumava um maço de cigarros por dia.

O paciente com mais de um fator de risco tem chances multiplicadas de infarto

Quando fazia exercícios em uma academia começou a sentir uma dor insuportável no peito, que não parava de crescer. 'Era como se um elefante estivesse pisando em mim', compara.

Ele conseguiu chegar em menos de 40 minutos ao hospital, ter seu infarto no miocárdio abortado, mas a experiência fez com que seus velhos hábitos mudassem. Exercícios físicos, hoje, só ginástica controlada. Cigarros, nunca mais. 'Decidi não me arriscar. Já consigo sentir o perfume que minha mulher usa', comemora. Eduardo Rossetto escapou das terríveis estatísticas de morte por infarto. Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2000, 59 mil pessoas morreram por infarto no miocárdio, superando o número de óbitos em homicídios (45 mil) e acidentes de trânsito (29 mil).

O PERFIL DA VÍTIMA
As principais características do infartado no Brasil

60% são homens
56 anos é a média de idade
78% são sedentários

Fonte: Projeto Afirmar

 

As doenças do coração no Brasil matam principalmente homens com mais de 50 anos. É um consenso médico que quase todos os casos são decorrentes dos mesmos fatores de risco - cigarro, diabetes, obesidade, colesterol alto e hipertensão. Na semana passada, saiu a comprovação na edição da revista americana Journal of American Medical Association. Segundo um estudo mundial, as doenças cardíacas de 84,6% das mulheres e 80,6% dos homens foram provocadas por um desses fatores de risco.

As mortes por infarto ocorrem geralmente quando o atendimento médico demora mais que uma hora e meia. Com a tecnologia disponível atualmente, 100% dos infartos poderiam ser abortados se atendidos no prazo. 'No Rio de Janeiro, por exemplo, apenas cinco ou seis hospitais têm o equipamento necessário para isso', alerta Bozza.

O equipamento a que o cardiologista se refere é um cateter que leva uma espécie de balão ao coração por meio da corrente sanguínea. Quando o cateter chega à artéria entupida, o balão infla e libera a passagem de sangue novamente. Esse procedimento chama-se angioplastia de resgate ou primária. Outro método utilizado, também com boas taxas de sucesso, é a injeção de substâncias chamadas tromboelíticas, que dissolvem o coágulo e normalizam a circulação. 'Se o hospital não possui nenhum desses dois métodos disponíveis, acaba tendo de tratar do infarto como se fazia em 1960, ou seja, controlando a pressão alta, a dor e os demais sintomas.'

 

'Só fico de dieta quando o médico manda. Sempre fui de pagar para ver, e aí acabo pagando caro demais'

JOSÉ NEWTON ANTUNES, empresário

Apesar da importância do cigarro como fator de risco para o infarto no miocárdio, não se deve subestimar a importância dos demais fatores. O empresário carioca José Newton Antunes parou de fumar dez anos antes do infarto que teve aos 45 anos. No entanto, tinha hipertensão arterial, obesidade e nunca dispensava comidas pesadas e cheias de colesterol. 'No churrasco, procurava aquela picanha com mais gordura', admite. E foi durante uma feijoada para comemorar seu aniversário que o susto aconteceu. 'Minha vista embaçou e a pressão no peito se tornou insuportável', relata Antunes. Conseguiu ser atendido em menos de 20 minutos e escapou da morte, mas não pretende mudar os hábitos tão facilmente quanto parou de fumar. 'Só fico de dieta quando o médico diz que é preciso', confessa. Agora, ele está perdendo peso para operar uma fissura na aorta, principal artéria do coração. 'Sempre fui de pagar para ver, e acabo pagando caro', reconhece.

A pesquisa brasileira também confirmou que o álcool ajuda a prevenir doenças cardiovasculares, conforme já se observou em outros países. Funciona assim o chamado 'paradoxo francês': quem consome álcool de três a sete vezes por semana tem menos chance de infarto que um abstêmio. 'Logicamente, esse benefício ocorre quando o consumo de álcool é moderado', diz Leopoldo Piegas.

 

ATAQUE FATAL
Infarto no miocárdio é a principal causa de morte no país - em números absolutos

Infarto
59.287
Homícidios
45.343
Acidentes de trânsito
29.640
Câncer de pulmão
14.715

Fonte: Ministério da Saúde

 

O Perigo também para as mulheres

 

                                                  MULHERES EM PERIGO
 

  Elas estão fumando mais e infartando mais

 O que antes era considerado apenas uma doença masculina agora começa a afligir homens e mulheres em proporções semelhantes. Na pesquisa de Leopoldo Piegas sobre fatores de risco para o infarto, as mulheres representaram 39% dos casos. De acordo com o Ministério da Saúde, das 59.287 pessoas que morreram em decorrência de um infarto no miocárdio em 2000, 24.049 eram mulheres - ou seja, 40% do total. Em 1970, esse índice não chegava a 10%.

Piegas afirma que as mudanças nos hábitos das mulheres nas últimas décadas diminuiu a diferença entre o número de homens e mulheres infartados. 'Por assumir o estilo de vida competitivo, que era mais comum entre os homens, as mulheres passaram a ficar mais estressadas, sem tempo para se alimentar direito. Acabam, inclusive, fumando mais.' O próximo passo do estudo de Piegas é, justamente, observar as diferenças entre os infartados de cada sexo.

Segundo o diretor da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Augusto Bozza, o aumento do índice de mulheres infartadas ocorre apesar de elas terem uma suposta proteção hormonal. O indício desse escudo feminino é que, até os 45 anos, a quantidade de infarto em homens é muito maior. Depois da menopausa, essa diferença cai bruscamente. 'Após os 65, o risco é praticamente igual.'

E, como o cigarro assumiu o posto de principal causador de infarto, as brasileiras correm perigo. Cerca de 11 milhões de mulheres fumam, contra 16 milhões de homens, diferença muito pequena se comparada à dos demais países em desenvolvimento. Além disso, uma pesquisa realizada em 1997 com estudantes de dez capitais brasileiras mostrou que, em sete dessas cidades, a proporção de meninas fumantes é maior que a de homens. De acordo com o Ministério da Saúde, isso se deve ao fato de as mulheres terem sido um dos alvos principais da publicidade da indústria do tabaco, que passou a divulgar o cigarro como símbolo de emancipação e independência.