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Revista Isto É - 07/06/05

 

Suspeitas de males causados por remédios e contestação da imparcialidade na aprovação de drogas deixam doentes e médicos em alerta

Cilene Pereira, Greice Rodrigues e Lena Castellón. Colaboraram: Celina Côrtes (RJ), Eduardo Hollanda (DF), Mônica Tarantino (SP) e Osmar Freitas Jr. (NY)

Nunca se falou tanto da segurança dos remédios. A confiança nos medicamentos vem sofrendo abalos desde a retirada do mercado de produtos como Vioxx e Bextra, antiinflamatórios de última geração. Hoje, muitas pessoas estão com a impressão de que há mais riscos embutidos nos produtos do que se pode imaginar. A suspeita mais recente envolve drogas contra a disfunção erétil, um dos campos mais lucrativos da indústria farmacêutica. Há duas semanas, o FDA, agência americana que regulamenta e fiscaliza o setor, comunicou a existência de 43 casos de perda de visão (parcial e total) em homens que consumiram drogas contra a impotência (Viagra, Cialis e Levitra). A associação não está comprovada, mas bastou surgir a notícia para deixar o empresário Olacyr de Moraes, 70 anos, o ex-rei da soja, desconfiado. “Usei o Viagra por curiosidade. Depois disso, não tenho dúvida: não vale a pena porque o risco é maior do que o efeito”, afirma.

A cegueira está associada a um distúrbio raro chamado de neuropatia óptica isquêmica não arterítica (naion). Ela normalmente ocorre em indivíduos com mais de 50 anos, portadores de diabete, colesterol alto ou hipertensão. É um perfil comum entre usuários desses medicamentos. “O naion não tem uma causa definida e poderia ter ocorrido nessas pessoas mesmo que não usassem o remédio”, diz João Fittipaldi, diretor médico da Pfizer, fabricante do Viagra. Vendida para mais de 23 milhões de homens, a pílula azul está ligada ao maior número dos casos reportados ao FDA. Foram 38 usuários de Viagra, contra quatro de Cialis e um de Levitra. A Pfizer garante que o remédio é seguro (o laboratório discute com o FDA se fará alguma alteração na bula). A Bayer, dona do Levitra, diz que em mais de 60 mil pacientes avaliados não houve registro do naion. A Eli Lilly, por sua vez, informa que, dentro de um universo de cinco milhões de consumidores do Cialis, foram encontrados três casos da neuropatia óptica, mas que não foi estabelecida relação entre a droga e o problema visual. A companhia vai mexer na bula americana e adicionar o efeito adverso.

Precaução: Olacyr usou Viagra.
Não gostou. Agora, acha que
os riscos superam os efeitos

Alerta – Para Fittipaldi, muito do barulho se deve à popularidade da marca. “Quando existe um nome forte, é normal que surja um interesse maior. Mas praticamente não houve impacto, nem entre os pacientes”, assegura. A repercussão do fato, no entanto, não é tão pequena assim. “Quando há uma ocorrência como essa, as companhias deveriam se organizar para rever o que já foi feito. Estou sempre preocupado porque esses remédios podem causar uma alteração do curso sangüíneo, diminuindo o fluxo na retina, o que é sabido desde o princípio. Fico alerta porque esses remédios são vendidos facilmente. Agora estou mais atento”, observa Mauro Campos, professor de oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo.

Também ganharam destaque as suspeitas sobre as estatinas, particularmente sobre o Crestor, da AstraZêneca. Estudos sugeriram que essa classe de remédios usada contra o colesterol poderia causar problemas renais e musculares. Por enquanto, porém, não passam de conjecturas. “Fico tranqüilo em relação ao uso das estatinas. Todas têm um excelente perfil de segurança”, garante o cardiologista Francisco Fonseca, da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

 
No Brasil: Barbosa, representante dos usuários, diz que os problemas incluem a venda de produtos  

Arranhões – Na esteira desses acontecimentos está surgindo também um questionamento na comunidade científica a respeito da confiança nos estudos que embasam a eficácia e a segurança das drogas. Ele tem se acirrado desde que estourou em 2004 o caso Vioxx, antiinflamatório da classe dos inibidores de COX 2 (categoria à qual pertence o Bextra, cuja venda também foi suspensa este ano devido à existência de dúvidas sobre sua segurança para pacientes cardíacos). O problema é que sobraram arranhões para o FDA e até para a forma de aprovação das drogas novas. A agência foi acusada de ter prestado pouca atenção a estudos que sinalizavam esse perigo (os debates científicos a esse respeito começaram em 2000). E o assunto esquentou em maio, quando congressistas americanos receberam documentos confidenciais do fabricante do Vioxx, a Merck & Co. Os papéis mostravam estratégias de venda para o produto e entre as recomendações estaria não abordar os riscos cardíacos quando o representante se reunisse com médicos. A companhia se defendeu alegando que um bom profissional estaria informado das pesquisas e lembrando que o estudo responsável pelo fim da comercialização do antiiinflamatório partiu do próprio laboratório.

Interesses – Outro ponto que tem incomodado os médicos é a ocorrência de conflitos de interesses entre os especialistas que produzem pesquisas e os que aprovam os remédios. Há duas semanas, um trabalho veiculado no prestigiado New England Journal of Medicine feito com 107 faculdades médicas americanas revelou que metade delas permite que a indústria farmacêutica, patrocinadora de várias pesquisas, esboce artigos que serão apresentados a publicações especializadas. Em alguns casos, segundo o estudo, as instituições são obrigadas a assinar contratos em que se comprometem a não disponibilizar os resultados publicamente. Autora de um artigo chamado “A medicina acadêmica à venda”, a médica Marcia Angell escreveu no jornal da Massachusetts Medical Society, veículo especializado do qual era editora, que seis entre 12 pesquisadores entrevistados citaram casos em que as divulgações de seus trabalhos foram barradas ou tiveram seus conteúdos modificados pelas companhias patrocinadoras. A discussão não foi avante. Marcia foi demitida.

Os autores do estudo do New England Journal , especialistas em saúde pública da Universidade de Harvard, observaram que cerca de 70% das pesquisas clínicas são pagas por laboratórios. Eles afirmam ainda que 69% das faculdades ouvidas se sentem de tal forma compelidas a buscar o dinheiro do financiamento que se submetem aos acordos propostos pelas empresas. “O que acontece às vezes é a companhia estabelecer protocolos. Mas não há interferência”, rebate Gabriel Tannus, presidente da Interfarma (associação brasileira dos laboratórios que fazem pesquisa). Ele afirma que resultados positivos e negativos são apresentados às agências reguladoras. “Estamos caminhando para um processo de maior transparência”, completa. De fato, o FDA anunciou estar montando um serviço independente para análise da segurança dos remédios.

Há outras complicações. Frank Wells, diretor da empresa Medical Legal Investigations, que investiga as pesquisas feitas no Reino Unido, aponta que
cerca de 5% dos estudos conduzidos na região são fraudes. “É uma constatação perturbadora. Primeiro porque envolve a saúde humana. Segundo porque
sanções contra as fraudes não existem em muitos países”, declara. Com tudo isso, não se deve desmerecer os estudos. “Eles são uma das formas de criar conhecimento e são responsáveis por parte da geração de recursos em muitos hospitais-escolas”, avalia o endocrinologista Alfredo Halpern, do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP). Além desses fatores, há outros aspectos que pesam contra a segurança do que se consome, particularmente no Brasil. “Há problemas da produção à venda em farmácias que não contam com um farmacêutico responsável”, critica o farmacêutico Antônio Barbosa da Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos.

 
Proposta: para Wong,
a criação de mais uma fase de pesquisas pode melhorar a segurança
 

Se essa situação assusta, pelo menos serve para promover uma discussão sobre a melhor maneira de produzir um remédio seguro. “Há uma corda bamba entre acelerar a aquisição tecnológica sem abrir mão da segurança”, admite Paula Sá, consultora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O toxicologista Anthony Wong, do HC/SP, defende a criação de mais uma etapa nos estudos clínicos (hoje são quatro). “Isso talvez ajude a descobrir antes efeitos identificados após o lançamento das drogas”, diz.

Enquanto o processo não é aprimorado, ao consumidor resta cautela (leia recomendações à pág. 50). Uma das atitudes a serem tomadas é jamais dar ouvidos às sugestões dos balconistas de farmácia. “Também é importante fugir da automedicação”, orienta Gilberto de Nucci, professor da Universidade Estadual de Campinas. É o que faz a escriturária Ana Lúcia Janichi (SP). “Quando uso um remédio, tomo cuidado. Tenho de saber o que consumirei e leio a bula”, conta. Medidas como essa e uma boa conversa com o especialista podem evitar, no mínimo, que o medicamento se transforme numa caixinha de surpresas desagradáveis.