MAM comemora 60 anos com 120 obras emblemáticas de Duchamp
Fonte:
Folha Online
SILAS MARTÍ
da Folha de S.Paulo
Um
certo Duchamp figurava nos telegramas de Ciccillo Matarazzo a
colegas na França e nos Estados Unidos. No papel de curador, o
artista francês em Nova York juntara Rothko, Mondrian e Miró para a
mostra que abriria o Museu de Arte Moderna de São Paulo --as obras
estavam embaladas no porto, prontas para zarpar, mas nunca saíram do
lugar.
Marcel Duchamp soube pouco depois que um sujeito que trabalhava para
Ciccillo nos EUA desaparecera com os US$ 2.000 que deveriam ser
pagos para o embarque.
Só agora, 60 anos mais tarde, é que Duchamp, de fato, chega ao
MAM-SP --não como curador, mas como artista, ele que foi um dos
nomes fundamentais para entender a arte do século 20 e tudo que veio
depois.
A maior exposição de suas obras já realizada na América Latina, de
acordo com a curadoria, tem abertura marcada para esta terça, dia em
que o museu faz 60 anos.
São 120 de suas obras mais emblemáticas, entre réplicas e originais,
incluindo a enigmática "O Grande Vidro", história do amor frustrado
de uma noiva e seus pretendentes ilustrada com desenhos de máquinas,
polias e roldanas sobre vidro.
Além da revolução que provocou, deslocando o cotidiano para a
galeria e jogando dúvidas sobre tudo que se podia chamar obra de
arte, Duchamp aparece aqui em sua inteireza estranha.
O autor dos ready-mades, precursor de Andy Warhol e do que se seguiu
ao questionamento do objeto único na arte, buscava uma pureza
conceitual deslavada. Tinha o hábito de depilar todo o corpo por não
gostar da irregularidade dos pêlos.
Nada também mais simples que seu urinol levado ao museu, a roda de
bicicleta instalada inútil sobre um banquinho.
Mas fora da arte e dentro da vida, se é que estavam mesmo divididas,
Duchamp afirmava o caos.
"O estúdio em que viveu foi sua primeira exposição", resume a
curadora da mostra, Elena Filipovic. Seu primeiro urinol, recusado
para a mostra que ele mesmo planejara, aparecia em fotografias
pendurado sobre a porta; a roda de bicicleta ficava num canto
empoeirado. Duchamp pensava nessa disposição e exibia as fotos como
uma curadoria pessoal.
"Ele não via a obra como objeto autônomo, e isso é uma das coisas
que o aproximam da arte contemporânea", diz Filipovic, que levou ao
MAM objetos do estúdio dele. "A arte conceitual só foi possível por
causa do pensamento de Duchamp."
A "Boîte-en-Valise", caixa com reproduções em miniatura de suas
obras, parece resumir as idéias do artista. Tentando negar a aura do
objeto, Duchamp fez mais de 300 cópias da caixa -a que está no MAM
pertencia a Andy Warhol.
Jasper Johns e Robert Rauschenberg, mestres do pop, também
colecionavam obras de Duchamp. Um romance com a colecionadora Peggy
Guggenheim teria aproximado o artista ainda mais dos EUA.
De fato, Duchamp teve sua primeira individual em Paris só depois de
sua morte, em 1968. O obituário nos jornais franceses saiu espremido
entre notas sobre competições de xadrez, passatempo que julgava tão
belo e interessante quanto a arte.
Ele fabricava inclusive as próprias peças de seu tabuleiro. Fez as
primeiras delas quando fugiu do alistamento militar nos EUA e foi
parar em Buenos Aires, tão pacata comparada a Nova York que não
restou alternativa senão o xadrez.
E a charada se desdobrava. Duchamp chegou a anunciar sua
aposentadoria 20 anos antes de morrer, mas era só estratégia para
ganhar tempo. Ao lado de seu estúdio então abandonado, alugou uma
sala secreta, onde trabalhou numa obra só revelada após sua morte.
A peça era "Étant Donnés": dois buracos numa porta que permitiam
ver, num experimento ótico surreal, uma mulher nua, as pernas
abertas. Dizem que a modelo para a obra foi a escultora brasileira
Maria Martins, amante do artista.
Rolo compressor
Os experimentos óticos de Duchamp, eróticos ou não, são outra
vertente de sua produção encoberta pelo rolo compressor que foram os
ready-mades. "Rotoreliefs" (1965) são discos coloridos em rotação
--há seis deles na mostra do MAM.
É o elo com a exposição na sala ao lado, em que o curador do museu,
Felipe Chaimovich, juntou obras de contemporâneos brasileiros
inspirados pelos questionamentos óticos do francês. "É um lado menos
massacrante que o ready-made. O buraco é mais embaixo em Duchamp",
diz Chaimovich.
Na mostra paralela, há obras de Nelson Leirner, Regina Silveira,
Rochelle Costi, Lygia Clark e Cássio Vasconcellos - todas do acervo
do MAM, enfim tomado por Duchamp. |